Lê grande, Maria!


O que me lembro de Caculé é um resto de poeira vermelha e farelo de biscoito que me sobraram nas dobras do vestido depois do café, quando acabei de chegar à casa de tia Bebela. Da viagem, a parada em Ibiassucê cujo único habitante que conheço, conhecido de muita gente, não me esperava à janela do ônibus, entre laranjas descascadas e geladinho, e nunca soube com certeza que no meu aniversário de dezesseis anos eu desejei que se demorasse em minha casa depois que todos os outros se foram. Na conversa de tia Bebela, dentro da mantegueira, espetada nos garfos, misturada com a goma do beijú, a memória do meu avô.
Do meu avô, uma fotografia que de há tanto que vi não sei se colorida ou a preto e branco, não sei se desbotada. A minha coxa como uma pálpebra inchada de chorar se fechando sobre seu braço, a fralda gorda e outras pessoas que a fotografia não reconhece, mas no espelho: as mesmas. E ainda o desfile de Sete de Setembro. O Tiro de Guerra na Avenida João Pessoa, o quartel inteiro a postos em frente ao número quarenta e três. Coturnos luzidios, rapazinhos de dezenove anos, lindos, não fosse o corte de cabelo. As armas, o atar dos cadarços, os passos perfeitos. Pareciam de brinquedo: eles, os passos, o sargento, os coturnos, os cardaços, só não as armas. Já havia visto espingardas antes. Com uma coisa daquela meu irmão matou um rato e o atirou ao oitão, me vincando a certeza de que não há morte de brinquedo. Providenciei com Teteu um enterro cristão. Porém Cau me interrompeu aos gritos, talvez pelo rato não ter sido batizado. Mas com aquela carinha tão linda duvido que alguém reparasse.
– Larga isso! Vou dizer à minha mãe! – Berrou ao me deparar com as pontas dos dedos se admirando com a penugem do bicho. Só vi a pantufa da minha mãe se estalando em meu lombo, e larguei o rato ainda a tempo de evitar o incidente.
Portanto eu sabia que tudo ali era de brinquedo, menos as armas, que ao comando do sargento:
– Preparar, apontar… – Se ergueram mesmo em direção ao meu avô:
– Nãããããããããããão! – Me antecipei, prevendo a tragédia – Não matem meu avô que está no céu! – Sacudindo nas grades do número quarenta e três. Uma dor desesperada, todo o peso de uma missão militar no meu grito, o cabelo enfarofado, o esmalte vermelho roído, os dentes afastados, os olhos muito grandes cachoeirando agonia e lágrimas, nem um soldado raso me olhou. Ninguém se dignou a desviar as balas. E lá de cima, o meu avô olhando o espetáculo pintalgado de verde e chumbo. Aposto que quis me pegar ao colo, fazendo dobrar minhas coxas como pálpebras muito inchadas sobre seu braço e morder meu mindinho como um ossinho de asa de galinha. Dizendo-me de um jeito que não sei como que não me preocupasse, pois se as balas ali chegassem era só pra lhe fazer cócegas nos pés.
Para além dessas minhas, as lágrimas da minha mãe na igreja. Era Dia do Perdão na Renovação Carismática, e a pregadora:
– Perdoe o seu pai.
E a minha mãe se iluminando toda numa mistura de sorriso e águas. Eu do seu lado, tentando me lembrar de qualquer coisa e ela uma certeza absoluta: nada. Me disse mais tarde: não há nada em meu pai que precisa ser perdoado.
Me dissolvi que nem um antiácido num copo d’água, borbulhando imagens de um homem em que nada há para se perdoar. Um homem só picolés, café em fogão de lenha, uma paixão lancinante por botões vermelhos em vestido verde-periquito. Aliás, uma paixão lancinante por verdes: os verdes olhos da minha avó, as palmas da caatinga, as palmas das mãos verdes de esmeraldas (algumas incrustadas sob suas unhas de garimpeiro, a maioria escondida nos mistérios das minas à espera de serem descobertas, como modelos em capas de revistas), a esperança que brilhava verde dentro dos seus sonhos, a couve, o mato.
Da igreja, também outras histórias do meu avô:
– Lê grande, Maria!
E minha mãe, só Maria, ainda não minha mãe, lia grande com o pensamento lá na novela. Biancando uma idéia de filha. Ainda não Eduardo – pois pra isso precisava meu pai – ainda não Ricardo, ainda não Liliana não sei porquê, pois que fui a primeira a nascer, embora tenha sido a quarta. E meu avô na assistência:
– Lê grande, Maria!
E ela aprendeu a ler grande com um homem que mal sabia escrever seu nome e ao qual nada há que se precise perdoar. Nem a bola de manteiga que fez o meu primo comer para tirar uma dúvida de queijo, nem as malvadezas veladas que hoje a gente conta com um quê de lenda, nem a viola quebrada para não ter que ouvir choro, nada. Sequer um docinho roubado lhe conferia pecados. Só a janta de ti’Anjin, só picolés de esmeraldas, só botões vermelhos, só o braço que dormia sob as pálpebras da minha coxa e da minha bunda de fralda. Só o sangue que pingava devagar para não assustar a minha tia que penava com uma fratura exposta, só o carro virado na estrada por um homem bêbado que não sofreu nada, só ele na maca falando baixinho, se indo mansinho como quem sabe que não volta:
– Lê grande, Maria…
E Maria já não Maria, mas minha mãe. Já lendo grande no púlpito. Já me ensinando a delícia de se morder um mindinho como um ossinho de asa de galinha. Já marcelando outra idéia no ventre. Eduardada até as pontas dos cabelos. Maria, que já não Maria, mas Bia. Que me ultrapassa em tudo que se refira a ler grande e a igrejas, que me ultrapassa em sorrisos e em verde-fé, em morais de histórias, em simpatia, em diolisandrices. Uma Maria que fala como quem canta um hino e em cuja alma também não treme nada que precisa ser perdoado.

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