Navegando a vau as enxurradas

Ama os dias de chuva, e até comprou um guarda-chuva preto, grande, daqueles antigos que também servem de bengala. Comprou-o não só por já estar fora de moda, mas pela exclusividade de possuir algo tão grande em tempos de miniaturas. Estampa um traço qualquer de Mary Poppins, talvez as botinas alcançando os tornozelos daquelas canelas fininhas. Ou o sorriso que mantém uma clara cumplicidade com os olhos. Nela, boca e olhos vivem aos cochichos, segredando traquinices, e juntos comandam o corpo todo num espanto fingido de gueixa. Dum estrado que se acomoda inteiro no vão sob a janela, permitindo servir-se até do último suspiro da luz do dia para os bordados, sente quando a infância precipita-se-lhe na cara aos pingos. Corre, então, para calçar as botas. Meinhas brancas para ressaltar o mal feito. Colhe o guarda-chuva no bengaleiro e vai-se de boleia com o riacho que brota ao pé do castelo e arrasta as pegadas dos reis de há tantos anos até a sua porta. Vai em breves saltos, como se ouvisse Django, e vê-se um rebolar maroto ondulando desde a cintura da barriga farta até a barra das saias. Ao contrário das outras senhoras, prefere os beirais às marquises. Corre por debaixo das bicas, e desvia-se dos lugares secos, metendo de quando em quando os pés nas poças. Fala sozinha, canta e ri-se quase alto. Olha para trás esperando ver… de quem se lembra? Decerto daquela meninada toda que vivia na mesma rua de terra batida em que morava onde o xixi dos anjos de tanto fazer cócegas abria sorrisos banguelos no chão, por onde se metiam até o pescoço acreditando estarem no maior rio do mundo. Também há de se lembrar daquela menina que foi esta mulher que vos fala, que hoje anda meio snob, com manias de higiene requintadas, mas que daqui uns anos vai abrir mão dessas mariquices e voltar a conquistar o mundo navegando a vau as enxurradas.

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