Sobre penas e asas




Esta crônica eu vou começar pelo fim, pelo pódio. Rubem Alves se colocou, certa vez, contra os pódios. Ele disse assim: “O pódio é motivo de briga. Todo pódio é motivo de briga. Ali, só cabem três”. E eu bem que concordo com ele. E até estenderia essa aversão a todos esportes competitivos, não tivesse conhecido essa modalidade de que vou falar. Trata-se de um torneio muito especial que acontece todos os anos por essas bandas e que transformou definitivamente a minha visão de esporte – dito – de competição. Nunca fui uma aficionada dessa área, entretanto, ossos do ofício, lá estava eu um fim-de-semana inteiro no Estádio João Paulo II a suar de alguma maneira para a realização do evento. Excetuando-se as escadas que de tão inclinadas e estreitinhas me causavam vertigem ao subir, não poderia ter estado em melhor lugar, garanto-vos.

Voltemos ao fim desta crônica no exato momento em que nos auto-falantes ouvia-se:

– Nos quatrocentos metros feminino, em sétimo (e último) lugar, a atleta Maria João!

Quem estivesse com ouvidos distraídos e apenas reparasse na comemoração da atleta, juraria de pés juntos que ela alcançara o primeiro lugar, a despeito das perninhas complicadas, dos passos frouxos e do olhinho meio morto que o sempre pestanejar tentava ressuscitar a todo custo. Esse mesmo observador de ouvidos distraídos se confundiria de igual modo com as outras atletas da prova, e com os outros quarenta e nove atletas de todo o torneio, a quem a voz do locutor caía-lhes como um encanto, bastando apenas ouvir seus nomes proclamados no estádio para que suas posições tomassem ares de puro ouro.

No intervalo, aproximou-se de mim o meu querido Emídio Paz. Todo sorrisos, ele me dizia:

– Tu viste? Tu viste? Ganhei de novo! Já é minha segunda medalha de ouro! – E enfatizou o Prêmio de Campeão Nacional de Marcha Atlética Adaptada, ganho no ano anterior, do qual há de se orgulhar para a vida inteira.

Só aos tolos seria capaz de interessar o fato de que ele fora, neste ano e no passado, o único a concorrer nessa categoria. Aos tolos e aos técnicos desportivos, o que é possível de significar a mesma coisa. Nada contra os técnicos desportivos, faço questão de ressaltar, mas vejam que tentaram anuviar o brilho dourado que emanava de cada nome anunciado. Me lembro de ver um deles pesar com seu cenho todo vincado de rugas de chateação quando um dos seus atletas parou durante a corrida para, com toda gentileza do mundo, cumprimentar a plateia que o incentivava:

– Vai, Chico! Vai Chico! Só falta tu!

Estava todo feliz o Chico, exibindo seu uniforme. No peito e nas costas, o papelote plastificado indicando o seu número. E ele se sacudindo todo em beijos e aclamações, os braços erguidos no ar como as asas abertas de um grande pássaro ou, quem sabe, de um desses anjos que a gente vê nas figuras, enquanto o técnico, se contorcendo em cólicas de desespero, o incitava a retomar a corrida para ao menos ganhar a medalhinha de participação. Quem lá queria saber de medalhas com tanta gente ali, amigos seus, aplaudindo sua glória? Pobre homem, estudou tanto e nem é capaz de perceber que aquilo é que é ganhar. Sem falar em Duarte. O único corredor que se dava o direito de relaxar um pouco a meio da prova. Se sentia uma fisgada no músculo, parava um pouco, se alongava, massageava os ombros e as pernas, e só quando se sentia melhor voltava a correr. Um exemplo de auto-respeito a ser seguido pelos melhores maratonistas.

No fim do segundo dia de provas, só as roupas suadas de tanto esforço me fazia ver que aquelas pessoas eram gente como eu, gente que come, sua e faz xixi. Porque sua felicidade era sobre-humana. Aliás, eram todos ultra-humanos, é provável que fosse a essa gente a quem Nietzsche se referia pela boca de Zaratustra como sendo o super-homem, aquele que diria “A minha felicidade, deveria justificar minha própria existência!". Eles são os que possuem um sentido desportivo e um espírito verdadeiramente olímpico de fazer inveja a qualquer Michael Phelps.

Agora, com todos os prêmios atribuídos e o pódio relegado à sua verdadeira condição de madeira e tinta, insignificantezinho, esquecido lá no meio do estádio, chegamos ao meio da crônica. Em Julho do ano passado deu-se o V Torneio de Atletismo Adaptado dos Açores, e todos aqueles atletas portavam deficiências físicas e mentais de leves a moderadas – um ou outro caso mais grave – vindos de perto e de longe para disputar aquelas provas. Diz-se ‘disputar’ em linguagem essencialmente técnica. Eles estavam ali era para brincar as provas. E para ensinar a gente. Dourar a nossa existência. Ao menos a minha douraram. Voltei cheia de medalhas pra casa. O peito brilhando amarelo, a alma toda reluzente. Vejam o caso do meu amigo Emídio. Por conta desses torneios de que participa e sempre vence, é grato à paralisia cerebral que o acompanha desde a meningite que apanhou ainda bebê e que lhe confere uma certa vantagem anatômica propícia a um corredor de marcha atlética. Enquanto Duarte me mostrou que se alguma coisa está me incomodando, eu devo abrandar a velocidade, parar um pouco, ver o que está acontecendo, aliviar a pressão e só então retomar a tarefa. Afinal, temos que respeitar nossos limites, avaliando-os com calma e tentar ultrapassa-los quando nos sentirmos seguros para tal e não lutando contra eles como fossem inimigos mortais. Já Paulo César, o galanteador, que todo elegante, trajando seus óculos escuros da moda, transforma sua esquizofrenia em pura excentricidade de uma popstar dos saltos em distância. Lindo! A encantadora Maria João, me transmitiu um ensinamento que todos os sábios taoístas vêem tentando meter na minha cabeça há décadas: a gente ganha mesmo quando perde. Verdade seja dita, sempre tinha visto isso como um cliché que só existia para consolar os lanterninhas, até levar com a alegria dela na caixa dos peitos.

Dito isso, sinto que agora temos o espírito preparado para começar esta crônica. O espírito que nos fará entender que ela fala de um tipo de gente que voa acima da humanidade; e nos tornará aptos a perceber que o que faz essas pessoas voarem assim alto, a ponto de roçarem as mãos nos anjos, não são asas, porque asas não têm. São as penas. As penas.
Revista Cotoxó - Março, 2010.


Foto: Timur Sezgin 2005

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