Correio #2.




De: Bianca Mendes, padaria improvisada
Para: Mainha, nossa casa.












Mãe, não sei explicar como acontece a cozinha dentro de mim. Nós duas sabemos que não vem dos seus genes. Talvez por ser hoje sábado, e os sábados  têm por fama fazer certos rebuliços na gente. Lembrei da sua voz no telefone: ‘já fez o pão?’, penso que mais pra termos algum assunto em comum, do que pra cuidar do sabor. Se bem que o sabor é uma cumplicidade. Quando alguém diz com uma colher estendida sobre a outra mão: ‘Toma, prova!’, está dizendo: ‘Come este crime comigo!’. E tem o aroma, a piscadela que sussurra: ‘É como mamar, não é?’. Então sim, acredito que você quis saber mais pela cumplicidade do que pela falta de assunto. Mas respondendo: eu não tinha feito, tinha preguiça, pão dá trabalho, mas hoje é sábado. Peguei a receita: Pão de ricota. Conferi os ingredientes comprados há tempos. Tudo certo, menos a farinha. A farinha cheia de uns bichinhos que parecem piolhos. Não devia, mas vou confessar: me veio um brilho de crueldade do tipo que a gente não assume por ser tão anti-cristã. Em outros tempos eu ficaria em pé na pia catando os bichinhos um a um e depois torrava a farinha. Mas hoje eu me permiti a barbaridade de torrar a farinha com os bichos todos lá dentro. E foi bom. Me senti mais segura, dona do meu reino. Má. Que delícia! Vê se não vai confessar esse meu pecado ao padre que você tem mania disso. A parte que mais me incomoda no cozer do pão é a espera. Uma meia hora que não passa nunca até dar a hora de colocar os outros ingredientes. O que vale é que depois tem a sova. A parte boa. Serve pra purgar a raiva. Se não tiver raiva fresca, reutilizo aquelas antigas. Se já tiver tudo reciclado, vou bater no pão contra as novelas portuguesas e pela erradicação dos programas de TV dos domingos, também pela música brega. Ou contra. Já não sei. Bem, vou lá cuidar da massa e volto. (   espaço de tempo que não contei   ) Sinceramente, não sei se vai prestar. Deixei levedar por tempo demais. E me distraí com outras coisas. Já estou arrependidíssima de ter começado. A gente podia ter buscado outro tipo de cumplicidade que não este. Eu podia estar te falando do meu namorado. Ok, não é pra você saber que eu tenho um namorado. Mas fica tranquila que ele não dorme na minha cama. Apesar de eu gostar muit      . Também não vamos falar de sexo. É estranho. Te conto que a páprika estava fora do prazo, mas para um pão que já vai cheio de bichos torrados isso é o de menos. Eu até posso ver a sua cara de nojo. Cumplicidade, mãe, cumplicidade! As ervas colhi no quintal. Tomilho, rosmaninho e salva. Ficou cheiroso. Pus a flor do tomilho junto, e ela liberou um cheiro de França. Falando em cheiro de França o pão está cozido. Em Portugal costuma-se dizer assim e eu gosto. Ficou lindo, mas veja, está duríssimo. Cá estou com um pão duro, mãe. Não se pode reclamar, são tempos de crise. Quiça, na próxima vez que tentar já serão tempos de vacas gordas e ele saia fofinho.

Se cuida, viu?
Um beijo.

Um comentário:

Paulo Vitor Cruz, ele mesmo disse...

q coisa linda.. deu vontde de te beijar e te abraçar e te morder, passarinha... o mundo precisa te conhecer! o mundo todo!