Correios #4.


De: Bianca, Outro lado da Ilha de Cipango.
Para: Tia Angélica, 4ª série A.







Querida tia Angélica,

Com certeza você não sabe, mas quando criança eu era muito criativa para ganhar presentes: lençol, galinha, uma mini-torradeira de cacau, um pé de café, perucas dos anos 60, pedras de estimação e um cacto que morava na mesa do jantar até crescer demais e ter que ir pra rua. Mas nunca fui muito criativa para as coleguinhas da escola. Eram todas iguais, todas se chamavam Aline e tinham o mesmo olhar desenhado das bonecas dos supermercados. Pareciam feitas em série. E eram felizes em série porque ganharam ao mesmo tempo a Barbie New Wave. Até me lembro das festas da escola onde as mães faziam as vezes de meninas, e as meninas, faziam as vezes de bonecas. E uma dizia: ‘Eu tenho uma Aline da Quarta Série!’ e outras logo respondiam: ‘Eu também! Eu também! E as mães brincavam com suas Alines que provavelmente ganharam também ao mesmo tempo. Penteavam os cabelos, vestiam roupinha e levavam-nas para as casas umas das outras. ‘Olha, a minha toca piano!’, ‘A minha dança ballet!’. E minha mãe, pobrezinha, nunca era convidada para esses convívios porque a boneca dela era descabelada, faltavam-lhe dentes, tinha os joelhos ralados e vinha com tantos defeitos de fábrica que parecia artesanal. Por isso nunca teve oportunidade para dizer que a sua boneca… bem, que a suuu…ua bonnn…neca... tinha escrito um conto sobre sapos. Mas que era um conto muito romântico. Claro que meu conto não foi para a parede da sala porque você não o considerou muito digno. Pensando bem, não me lembro de te ver dignificando muita coisa. Acho que foi por isso, tia Angélica, que você nunca saiu da quarta série. Tivesse ousado um pouco mais e teríamos ido pra faculdade juntas. Talvez nos tornássemos amigas e… não. Não acreditemos na nossa amizade. Seria preciso mais que ousadia. Era importante comover-se com um sorriso desdentado e com feridas grudando no jeans das calças. Mas você não é dessas. Nunca saiu da quarta série porque ir para a quinta te obrigaria a mudar de sala cinco vezes por dia e a bajular Alines adolescentes que, meu Deus, ninguém suporta. Eu te compreendo. Mas, sabe, me lembro de você ensinando fração. É talvez a única aula de que me lembre de fato. E você dizia: ‘É como a gente faz pra tapear menino: pega um chocolate e divide em partes iguais, e ele ficará feliz porque cinco pedacinhos lhe parecerão mais que um chocolate inteiro.’ No entanto, você era grande e não acreditava nisso. Você nunca acreditou, por exemplo, que uma menina com cinco remendos pudesse valer mais que uma menina inteira. Enfim, aproveito pra contar que publiquei um livro dia desses. E acrescento que isso só aconteceu, querida tia Angélica, porque eu não aprendi nada com você.

Atenciosamente,
Bianca.



2 comentários:

Paulo Vitor Cruz, ele mesmo disse...

sentindo e aplaudido (vc pode ouvir?)

Kelly Anne disse...

Primeiro gostaria de dizer que eu adorei o blog, é lindo!
A carta é fantástica também, muito comovente.
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http://classicheap.blogspot.com/