Meu Querido Noitário #3.





Imagina as pontas dos dedos suando, as pupilas se dilatando, as papilas gustativas se afiando umas nas outras, se amolando, talhando alma e julgamento e tornando-nos apenas instinto, imagina? Não foi o que imaginei, mas foi como fiquei quando o vi parado ao lado da janela de costas pra mim. Ele falava ao telefone com uma pessoa qualquer marcando um encontro qualquer num bairro qualquer numa hora qualquer e eu diante dele me sentindo uma qualquer. Me sentindo não, eu uma qualquer mas uma qualquer cujas papilas gustativas afiavam-se umas nas outras, cujas pontas dos dedos suavam, escorriam, pingavam, viravam rio, corriam pro mar, dissolviam-se em mar, era mar, era mar, era amar, maravilhada por ve-lo ali em pé ao lado da janela, falando, gesticulando, e completamente nu. Não sei se quando atendeu o telefone já estava despido, ou se o despi eu enquanto ele falava de encontrarem-se todos num coreto numa praça em que havia uma estátua, nao sei se eu fiquei estática ou se ondulava, se me remexia, mas mexiam-se-me as vísceras ve-lo ali, em pé, todo em pé, cada vez mais em pé, na vertical, rígido como um poste, não, não como um poste porque começou a andar. E eu cada vez mais escorrida, mais aguada, mais chovida, mais riada, mais marada, totalmente seteoceanada por ele. Eu um géiser vertendo, explodindo, jorrando, queimando, embaciando as paredes, os tijolos, o avesso da pele, da retina, da cortina, diante de um corpo que se descortina, me desatina, me obstina, me fascina, me faz libertina, me rouba a história, me arranca o passado, me tira o tempo, não me dá tempo, no máximo um segundo de presente, meu presente é todo ele que tomo de presente pra mim. Você imagina? Eu não. Porque não preciso. Eu vivo, eu como, eu me viro, eu me viro porque ele pede, por que pede? Ele manda, desmanda, demanda, faz o que quero de mim. E faz assim, bem assim, sempre assim, me fala assim, me cala assim. Como assim? Sim, como assim, me come assim e quando penso que é o fim ele diz pra mim: vira-te, porque ainda não acabei. E eu rezo pra que ele não acabe, pra que não acabe nunca, pra que continue, pra que permaneça que não amoleça que entardeça anoiteça e amanheça dentro de mim. Amém? Então ele desligou o telefone e me encontrou semiajoelhada, rezando, quase chorando, em estado de profundo encanto. E se enterneceu com aquela cena nazarena, tão pura, tão serena, com jeito de novena, me deu um beijo na testa e saiu. 

Nenhum comentário: