Meu Querido Noitário #4.



A aula estava quase no fim, e no entanto não acabava nunca. Àquela hora, eu estava derrotada. Enganchada entre o ponteiro dos minutos e o dos segundos impedia o tempo de avançar. A cabeça cheia de imagens de ontem. De hoje, eu só tinha a azia. Mas não era uma azia de cafeína, era uma azia de consciência, devida à mania de fermentar acontecimentos da minha vida. Acredito que dessa fermentação produza-se alguma bebida, algum tipo de vinho sanguineo que embriague não o corpo, a existência. Minha existência embriagada e o professor falando, falando, falando. De quê, meu Deus? Eu já não ouvia nada, entretanto via as palavras se formando no fundo da sua garganta, tecidas pelas cordas vocais como se ele tivesse engolido a avó com suas agulhas de tricot. E a avó engolida tecia não meias, mas dúzias e dúzias de palavras molhadas que jorravam, jorravam, jorravam. Assim, em golfadas de três. Eu estava sentada na primeira fila. Sim, é verdade que sou míope, mas não foi por isso. Também sou aplicada, é um fato. E no entanto, também não foi esse o motivo. O salto do meu sapato ficou preso entre os paralelepídedos da rua, no meio de um cruzamento. O sinal abriu, eu estava presa. Vieram umas pessoas me ajudar, um guarda de transito foi chamado para controlar a situação. Os motoristas dos carros que estavam já bem afastados vieram ver o que se passava e só depois que o semáforo deu duas ou três voltas é que consegui me libertar. A esse tempo, perdi o ônibus e tive que fazer o caminho até aqui a pé, o que explica o meu atraso e o motivo de eu me sentar numa das poucas cadeiras livres, todas na primeira fila que sempre permanecia vazia, dado ao fato de todos se repugnarem com a enxurrada de perdigotos que cascateavam aula abaixo. A literatura da qual ele falava caía em forma de sonetos, de versos alenxadrinos, ritmada metricamente gota a gota. Por momentos flutuavam no espaço entre a boca do professor e a minha cara, até perderem o poder de levitar e desabarem em mim. Adorei. Sou louca por poesia. Tocou a sirene. As pessoas levantavam-se, saíam, arrastaram suas vidas para fora da sala, dentro dos estojos ou espalmadas nos livros, fazendo de marcadores. Sem dar por isso, o professor continuava, continuava, continuava. Falava jogando as palavras na minha cara, me encharcando com sílabas ricas em rimas e ptialina. E eu o ouvia, ouvia, ouvia, e me encharcava, pois. Fechava os olhos e sentia a poesia que de vez em quando me acertava nos lábios. Como jamais praticaria a indelicadeza de um lenço, me levantei e avancei para ele com um beijo. Se é pra me molhar, senhor professor, que seja com todo  o seu português.

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